Santereza para as pessoas

Venho acompanhando as reuniões do retorno do Salve Santa Tereza, que engrossou o caldo nas mobilizações recentemente em função da decisão autoritária da prefeitura de BH de ceder o mercado do bairro à FIEMG e ao Senai para a construção de uma grande escola técnica de formação de mão de obra para a indústria automotiva da região metropolitana. Vem sendo um movimento interessante, não somente em torno dos projetos para o mercado (agregando também alguns defensores do projeto imposto pela prefeitura, mas que se interessam muito na defesa da ADE), mas principalmente pela manutenção e o fortalecimento da ADE (Área de Diretrizes Especiais) do bairro, criada justamente a partir de mobilização semelhante na ocasião da elaboração do Plano Diretor de 1996.

[parêntese sobre a Área de Diretrizes Especiais: trata-se de um instrumento do plano diretor para especificação de políticas de ocupação e uso em função de peculiaridades de determinadas áreas que demandam tratamento especial, não podendo ter as mesmas regras que se aplicam ao zoneamento geral da cidade. algumas ADEs são voltadas para a proteção de determinadas áreas de interesse histórico, cultural, paisagístico e arquitetônico, como o Santa Tereza, a Pampulha, e a Cidade Jardim. no caso do Santa Tereza, procura-se inibir o adensamento através da limitação do coeficiente concedido às incorporadoras (dando origem aos diversos predinhos de 3 andares que se espalharam pelo bairro), e a restrição de usos incompatíveis com a intenção de preservar o caráter histórico-cultural da área, que preserva em um recorte da cidade o que era sua característica predominante em outros períodos históricos, trazendo a importância fundamental para a cidade contemporânea (entrando um pouco numa perspectiva utilitarista aqui, deixando questões políticas e de alteridades (im)possíveis para depois) de ter áreas onde a cidade possa respirar mais tranquilamente, sem o alto nível de adensamento, circulação de veículos etc. em relação ao uso, são permitidas atividades comerciais e de serviços compatíveis com o caráter da área (bares, restaurantes, pequenas lojas etc.), sendo que as escolas são limitadas a áreas de no máximo 400 metros quadrados (o mercado tem 6 mil). Santa Tereza, assim como a Pampulha, presta um serviço [sic] importantíssimo à cidade, ao servir de refúgio, não somente para seus moradores, do ritmo ultra-acelerado estonteante e prejudicial à saúde (física e mental) que a metrópole tomou nas últimas décadas. e isso é totalmente relacionado ao fato do bairro ser protegido na legislação de uso e ocupação e no Plano Diretor em voga. ou seja, preservar o Santê é questão de saúde pública (vide correlação entre transtornos mentais e metropolização excludente em São Paulo nesta pesquisa)]

O mercado do Santa Tereza passou por diversas idas e vindas desde que foi desativado há sete anos atrás, com diversas tentativas de imposição de usos não-compatíveis com a ADE por parte da PBH. A aprovação da escola técnica no Conselho Municipal de Política Urbana (COMPUR), foi feita sem nenhuma forma de consulta ou participação ampla dos moradores do bairro, e desrespeita completamente a legislação atual, não somente ao destinar um uso não permitido na ADE (treinamento de mão de obra para a indústria automotiva), mas ao desrespeitar o limite de área para escolas no bairro. Afirma-se que foi feita uma consulta às “lideranças” [estamos em tempos de construção de horizontalidades, certo?] do bairro, numa reunião a portas fechadas, em que os convidados foram abertamente desencorajados pelos organizadores de levar seus convidados. E ademais, as obras da nova escola no mercado começaram antes mesmo da aprovação do projeto no COMPUR, o que constitui mais uma irregularidade no processo.

[parêntese a respeito do COMPUR (quem estiver com pouco tempo e/ou paciência pule para depois dos colchetes): trata-se de um conselho deliberativo que deveria promover a consulta à população na aprovação de projetos e leis de caráter urbanístico que afetam a cidade e seus moradores diretamente. o conselho é composto por 16 membros, dos quais 8 são do próprio poder executivo municipal, e a outra metade é composta por 2 conselheiros da câmara municipal, e o restante são representantes da sociedade civil: 2 do setor técnico, 2 do setor popular e 2 do setor empresarial. considerando que, na atual conjuntura, setor empresarial e governo são coisas entrelaçadas, há uma maioria formada que torna a “arena” uma simples formalidade burocrática, que ainda tem a utilidade de permitir à prefeitura afirmar que seu planejamento urbano é participativo e democrático – claro que sem entrar no mérito de que participação e que democracia são essas]

Além do mercado transformado em escola técnica inserida no circuito interessado em continuar entupindo nossas cidades com ainda mais automóveis, alguns outros projetos vêm colocando a ADE do Santa Tereza em risco, com destaque para o projeto (antigo, retomado nas últimas semanas) de abertura da Rua Conselheiro Rocha, abrindo o bairro para o tráfego de passagem, bem como a operação urbana consorciada do Vale do Arrudas. A Conselheiro Rocha é uma via constituída de trechos interruptos por barreiras diversas ao longo das margens da ferrovia na parte interna ao bairro. Começa na Vila Dias,

[parêntese a respeito da Vila Dias: na primeira versão do projeto da maior torre da América Latina, a Vila Dias, aglomeração informal situada na beirada do Santa Tereza, literal e simplesmente desaparece do mapa. no final do ano passado a Urbel iniciou os trabalhos do Plano Global Específico (o famoso PGE, que constitui o primeiro passo no planejamento das intervenções urbanísticas de estruturação, urbanização, provimento de infra-estrutura e a posterior regularização fundiária das vilas e favelas da cidade) num período em que circulavam os boatos acerca da mega-torre justamente na área da vila, e a partir daí surgiu o Fica Vila, como um movimento de defesa da permanência dos moradores na área. o escritório de arquitetura responsável pelo projeto da torre revisou o plano de ocupação, afirmando a compatibilidade do arranha-céu com a vila, e que ela não precisaria ser retirada. mais sobre a operação urbana do vale do arrudas abaixo]

e vai até a Avenida Silviano Brandão nas redondezas da saída para Sabará através do Santa Inês, com diversas barreiras ao longo da via no Santa Tereza. Estas barreiras fazem com que a via deixe de ser usada como passagem para aqueles que vêm de outros bairros e se destinam a outros bairros, e mantêm as redondezas da ferrovia com um nível de tranquilidade que só é (muito pouco) alterado pela passagem do trem e do metrô. A praça Ernesto Tassini, onde era a antiga Parada do Cardoso, só mantêm seu sossêgo boêmio (característico do que era a cidade como um todo em outras épocas em que tuberculosos de todo o país vinham se tratar em Belo Horizonte em função de seu ar puro) devido às barreiras atuais da Rua Conselheiro Rocha e do fato de que ali só passa trânsito local, e em muito pequeno volume. Um professor da UFMG conta que nos anos 90 foi consultado pela própria prefeitura para dar um parecer a respeito deste projeto de abertura da via através da integração de seus trechos e da retirada das barreiras diversas que os separam. Obviamente seu parecer foi contrário ao projeto, bem como, acredita ele, o de todos os outros pareceristas, exatamente pelo fato de que isso teria o potencial de transbordar negativamente para além do simples tráfego de passagem, e que poderia no limite, em suas palavras, “matar o bairro”. Moradores da região dizem estar muito preocupados com movimentações recentes da prefeitura para a abertura dessa via, aparentemente retomando o projeto que havia sido engavetado em tempos menos autoritários e de maior respeito ao que os moradores tinham a dizer a respeito de intervenções que alterariam de forma abrupta seus espaços de vida cotidiana.

[parêntese sobre as operações urbanas consorciadas: trata-se de um instrumento de política urbana que surgiu no estatuto da cidade, criado com várias intenções, dentre elas a possibilidade de se restruturar totalmente (com grandes demolições e re-urbanização, redefinição de traçado de vias etc.) áreas que poderiam demandar intervenções dessa natureza, como antigos distritos industriais situados em áreas de onde a atividade industrial já saiu, antigas áreas portuárias abandonadas etc. é um redesenho de determinada área com a concessão onerosa às construtoras de um potencial de adensamento mais elevado que o normal, cuja arrecadação seria gasta dentro da própria área, em elementos democraticamente definidos nos planos diretores, de acordo com necessidades prioritárias da cidade como um todo, ou seja: habitação de interesse social, urbanização de vilas e favelas vizinhas às operações, construção de parques, praças e em outros equipamentos urbanos. rapidamente o capital imobiliário enxergou o altíssimo potencial do instrumento para atender suas próprias necessidades de coeficientes de adensamento mais generosos, sendo que a contrapartida ajudaria a valorizar seus próprios empreendimentos, desde que gasta no embelezamento ou até mesmo na urbanização de vilas e favelas vizinhas – e aí vem o pulo do gato – mas não em habitação social. neste texto recentemente publicado na Folha, o urbanista-vereador do PT-professor da USP Nabil Bonduki defende a possibilidade de se recuperar o instrumento dessa captura, e levanta uma discussão muito interessante e pertinente para o planejamento contemporâneo na metrópole, que está repleto de operações urbanas à vista. veremos se será o caso de se resolver esse impasse, pois há um motivo por trás do capital imobiliário não se interessar na oferta de habitação de interesse social na vizinhança de seus grandes empreendimentos: o padrão altamente segregador (que prefere os condomínios fechados acima de qualquer coisa) das camadas mais abastadas de nossas cidades, que não vê com bons olhos os moradores de baixa renda em habitação social (mesmo que deixando para trás o legado modernista do grande conjunto homogêneo em blocos) nas suas vizinhanças, e isso diminui o potencial de valorização desses empreendimentos, que é um pré-requisito para a adesão do capital imobiliário que traz a arrecadação suficiente para a aplicação nos novos equipamentos e nas intervenções urbanísticas propostas]

A operação urbana consorciada do Vale do Arrudas ainda é muito pouco conhecida da população de Belo Horizonte, e ainda não teve seus detalhes divulgados pela prefeitura. Sabemos somente que a área delimitada pela operação passa por todo o entorno imediato do Rio Arrudas, o que inclui uma parte de Santa Tereza que coincidentemente (?) não faz parte da ADE, e que poderia receber edifícios de enorme porte. Assim, a maior torre da América Latina deixa de ser somente um delírio capitalista megalomaníaco e se torna, pelo menos juridicamente, uma verdadeira possibilidade. Mas o importante é que, mesmo se a torre não for construída, a operação urbana tende a inserir grandes edifícios no entorno imediato do Santa Tereza, o que também poderia minar a ADE, por aumentar exponencialmente o trânsito no bairro e trazer uma onda avassaladora de valorização imobiliária que tornaria o patrimônio altamente vulnerável ao mercado. Ou seja, trata-se de um grande projeto urbano que envolve uma ameaça à ADE mesmo se ela for formalmente preservada, pois descaracteriza radicalmente seu entorno imediato e cria pressões urbanas diversas que o bairro pode não suportar. Se a ADE é o espaço onde a cidade (se afirma como cidade e) respira, a operação urbana traz com ela o risco da ADE ser asfixiada (como a metrópole engolindo a cidade que ainda resta).

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Uma das falas mais interessantes das últimas reuniões veio de um antigo morador do bairro defendendo a emancipação de Santa Tereza, para que o bairro tenha sua própria prefeitura, seus próprios vereadores, e sua própria legislação urbanística. Este grito por autonomia me fez lembrar de uma conversa da geografia urbana relativamente recente (principalmente a partir do trabalho da professora Ana Fani) que distingue a ideia de cidade do que é a metrópole contemporânea, tratando do processo de metropolização como a tomada da cidade e sua colonização pela metrópole – espaço da indústria, do grande capital imobiliário, do espaço urbano tornado fábrica, dos fluxos ultra-acelerados. Neste processo a cidade se torna o outro, a alteridade encurralada pela metrópole em expansão constante, ligada à necessidade de expansão do próprio capital. A luta pelo lugar é uma forma de freiar esta colonização, para que esta metrópole do capital não seja total, totalizante, totalitária (como ele tende a ser), e não pode ser reduzida – como interpretariam muitos – a uma atitude do tipo “aqui no meu quintal não, que vão fazer em outro lugar”. Trata-se da defesa do lugar inserida numa perspectiva ampliada de justiça social e espacial (entendendo estes dois como domínios inseparáveis) e articulada numa série de afirmações e reivindicações democráticas pelo direito à diferença e pelo lugar em relação aos processos hegemônicos atuais de construção da cidade-empresa, que inclui outros “espaços lentos” (Milton Santos), que vão desde as ocupações urbanas, as áreas de proteção ambiental, as vilas e favelas, até os direitos dos barraqueiros nas portas dos estádios e dos moradores de rua. É expressão da defesa da cidade como espaço da obra, do encontro, da fruição, do tempo livre, da construção do comum – contra sua completa transformação em máquina produtiva.
 

11 respostas em “Santereza para as pessoas

  1. Me desculpe, mas infelizmente enquanto nossos suposto líderes (sem exceção) estiverem preocupados com suas carreiras políticas, presidentes de associações, líderes comunitários, estão todos preocupados com seu próprio umbigo, participei da eleição para presidente da associação do bairro e ví com meus próprios olhos a baixaria e nenhuma preocupação com a comunidade somente com a ascensão pessoal, ninguem tem uma proposta concreta para o mercado nem para santa tereza, apoio qualquer uma, desde que seja concreta e fundamentada o resto é lero-lero.

  2. Haverá uma reunião na quarta feira no Oásis. Se, eu disse “se”, alguma pessoa que realmente tenha autoridade para responder a seguinte pergunta : – Para a implantação do projeto da FIEMG será necessário modificar alguma coisa na ADE de Santa Tereza ? eu disse ADE de Santa Tereza ( Santa Efigênia é outro bairro ) , se NÃO precisar de alterar nada na nossa ADE, que seja bem vinda a FIEMG e o seu projeto , se precisar de alterar alguma coisinha bem pequenininhazinha, ESQUECE ! Santa Tereza sempre soube lutar para continuar sendo o melhor bairro de Belo Horizonte e isso não vai mudar . Santa Tereza sabe valorizar as pessoas que sabem valorizá-la.

    • A lei que regulamenta a ADE de Santa Tereza não permite a instalação de grandes escolas na região, apenas as que já existiam antes da lei. Além disso, como a prefeitura pretenderia passar um bem público para a iniciativa privada? Operação Urbana Consorciada? Balela! E mais uma coisa: está assegurado no Plano Diretor de BH a participação popular nos desígnios do bairro. Na lei que regulamentou a ADE não foi aprovado um conselho deliberativo no bairro, mas sim um consultivo. Está na hora de se fazer um grande barulho para se alterar na Câmara esse tópico da lei – tornar o conselho popular do bairro em deliberativo!

      • não sei o que quer dizer com “balela”, mas que lindo seria se a operação urbana fosse só uma conversa fiada que pudéssemos ignorar… o problema do mercado é um fio de cabelo perto dela. imagina só uma fileira de prédios altíssimos dos dois lados do arrudas beirando todo a parte baixa do bairro, da vila dias ao temático…

      • Felipe, o que eu quis dizer com “balela” é que é conversa fiada fazer essa “doação” ou “cessão” de um espaço público para a iniciativa privada através de operação urbana, pois eu acho que não seria legal. Não tenho certeza pois não sou da área de direito, mas penso que todo bem público não pode ser doado, ou vendido, ou cedido de qualquer outra maneira se não tiver em primeiro lugar uma lei declarando que isso seria por utilidade publica. Depois, teria que ter outra lei para alterar a ADE de ST. Ou seja, está tudo ilegal, portanto é caso de Ministério Público!
        Quanto a participar de reuniões, meu tempo já passou. Dediquei-me ao trabalho comunitário no bairro, através do Movimento “Salve, SantaTereza!” por uns 10 anos, fui conselheira do COMPUR pelo setor popular, fui assessora da Associação Comunitária na gestão do Marilton e colaborei com várias outras gestões, como a da Rose, do José Ronaldo da Cruz, do Yé, e de outras 2 outras antes desses, agora é a vez de outros como você! Estou às ordens para qualquer outra coisa, mas para grandes esforços eu não sou mais apta por causa da coluna. Estamos aí para troca de idéias e lutar do jeito que posso, tá bom?

  3. A criação da ADE de Santa Tereza, no Plano Diretor de 1996, previa que ela teria participação popular em todas as questões internas. A lei de sua regulamentação não saiu como queríamos nesse quesito, com um conselho deliberativo, e foi aprovada como sendo consultivo apenas. Mas até mesmo esse aspecto de ter um conselho consultivo para o bairro foi esquecido pela comunidade, que não ocupou seu espaço com garra. É preciso vigilância constante para garantir conquistas conseguidas com muita luta! Pouco se fez para garantir esse caracter consultivo nos últimos 15 anos. Agora estamos vendo como os interesses econômicos e políticos vão comendo pelas beiradas a ADE de Santa Tereza. Lutem, pessoas, antes que Inês morra!!!
    Edelweiss, pelo Movimento “Salve, Santa Tereza!”

  4. Pra falar a verdade, eu nunca li nenhum parecer de professor contra a abertura da via Conselheiro Rocha, ou então eu me esqueci. Desculpem-me, coisas da idade… Quem defendeu com unhas e dentes a idéia da não abertura da rua Conselheiro Rocha, com a manutenção da Vila Dias foi o Movimento “Salve, Santa Tereza!” Nós, sim, fizemos muitos pareceres.

    • bom dia Edelweiss. posso tentar recuperar isso, se essa pessoa topar e conseguir encontrar os registros publicamos aqui. pode ser que o salve santê nem tenha ficado sabendo disso naquela ocasião, foi uma consulta feita pela PBH na época ao que é o chamado setor técnico representado no Compur hoje. mas sem dúvida nenhuma, se o movimento não defender com unhas e dentes parecer de professor não adianta nada…

      • Felipe, em primeiro lugar, parabenizo-o pelo seu texto. Muito bom e elucidativo!
        Em 2º, quero sim ver esse parecer, se você conseguir recuperá-lo. Se o autor não quiser que o divulgue aqui, será que ele permite passar-me por e-mail? Peço isso porque na ocasião só soubemos de nossa própria árdua luta pela não abertura da via. Agradeço muito o apoio técnico de professores, pois os acadêmicos traduzem com muita clareza os nossos pontos de vista populares.
        Atenciosamente,
        Edelweiss – arquiteta urbanista

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